02/05/2012
Boletim Internacional de Desenvolvimento Local
Sustentável
Boletim Informativo #88
1º de maio de 2012
Sumário
As
línguas locais, uma verdadeira ferramenta para apoiar as práticas agrícolas
sustentáveis
Mensagem
da equipe editorial
A globalização se impôs, para o melhor e para o pior. Ela traz consigo
elementos positivos, trocas interculturais, a partilha dos conhecimentos entre
os povos do planeta, novas formas de solidariedade. A consciência que formamos
uma única humanidade avança e também que dispomos somente de um planeta, com
recursos limitados. Mas a globalização econômica não respeita nada. O que
chamamos neoliberalismo provoca crises de naturezas diversas, financeiras,
econômicas, políticas, ambientais e sociais. Os efeitos negativos se acumulam, e
hoje eles são mais bem conhecidos.
Um efeito negativo
da globalização resulta das guerras de conquista e da dominação colonial dos
séculos passados. Elas impuseram suas línguas, suas referências culturais, e
demasiadas vezes suas próprias religiões, com impactos destruidores para a
maioria das línguas e das culturas do mundo. Cada ano, línguas desaparecem e
ficam perdidas para sempre! Hoje, as novas formas de “conquista” são a razão de
ser das grandes mídias cujo objetivo é a “lucratividade”. Elas refazem a
história, desfiguram a realidade, formatam uma cultura de massa, desde a mais
tenra idade. Um só exemplo, em relação com esta edição do boletim: o que
Pocahontas de Walt Disney tem a ver com a realidade do choque cultural imposto
às culturas ameríndias nos séculos XVIII e XIX.
Mas a resistência
e uma resposta se organizam, muitas vezes pelo viés de um desenvolvimento local
endógeno. Atualmente, em todos os continentes, as populações locais se
reapropriam de suas próprias culturas com orgulho. As línguas e as culturas,
como organismos vivos, devem se reproduzir e se desenvolver, tanto quanto as
outras formas de vida de nosso planeta. Os valores, os mitos, mas também as
culturas técnicas tradicionais, adequadas aos recursos naturais dos lugares,
estão em via de reapropriação totalmente pertinente. Em um grande número de
meios, línguas e culturas se tornam hoje o vetor de seu autodesenvolvimento.
Nesse sentido, as línguas locais tão desprezadas pelos colonizadores podem se
tornar uma das verdadeiras alavancas potentes do desenvolvimento local
sustentável.
Nesse número,
Judith ilustra esta abordagem com o exemplo do Instituto Africano da
Alimentação e do Desenvolvimento sustentável no Mali que ajuda as mulheres
agricultoras do povo Bambara a enriquecer sua língua a fim de se apropriar dos
aspectos científicos em sua própria língua em vez de utilizar a língua do
colonizador (a língua francesa neste caso). As culturas locais testemunham da
vitalidade de que as mulheres dão prova para fazer ouvir sua voz quando ficam
determinadas. Elas renovam a prova que a diversidade é o verdadeiro fundamento
da universalidade humana.
A cultura de massa
não passará! Nós estamos no fim de uma era de dominação de cerca de cinco
séculos. O desenvolvimento holístico das comunidades está recompondo o capital
social local para permitir a continuidade da vida. Esta renovação, se conseguir
resgatar o orgulha da herança com a abertura (em vez dos muros erguidos contra
os vizinhos que vemos tantas vezes serem construídos), em um mundo interdependente,
pode reconstruir as solidariedades sobre as bases da biodiversidade natural e
cultural.
Judith Hitchman
Yvon Poirier
Martine Theveniaut
As
línguas locais, uma verdadeira ferramenta para apoiar as práticas agrícolas
sustentáveis
Por
Judith Hitchman
Um aspecto do
colonialismo, que passa muitas vezes despercebido é a forma como as línguas autóctones
foram marginalizadas e suplantadas pelas três línguas que dominam ainda hoje a
maioria das regiões do planeta: o inglês, o francês e o espanhol. Em certos
casos, como na Irlanda, houve um período da história durante o qual as pessoas
que eram flagradas falando sua língua materna eram condenadas à pena de morte!
Este artigo tem
por objeto essencial a forma como as línguas locais na África podem se tornar
uma ferramenta potente de autonomização. Ele indica também como o trabalho
comprometido de organizações pode ajudar a desenvolver as ferramentas
linguísticas de desenvolvimento local sustentável em coletividades que, muitas
vezes, foram negligenciadas. Encontramos um belo exemplo deste trabalho com
mulheres agricultoras bambara do Mali, entre as quais muitas são analfabetas.
O bambara é uma
das principais línguas faladas no Mali com o fula e o mandinga. Em compensação,
a língua oficial utilizada na educação formal é sempre o francês. Como em
numerosos outros países africanos, isto significa que quem não frequentou o
ensino médio tem um domínio muitas vezes limitado da língua dominante (o
inglês, o francês ou o espanhol, conforme o colonizador). É igualmente um dos
motivos para a introdução de uma língua comum – o kiswahili – em vários estados
da África oriental, pois ela permite uma melhor comunicação entre os povos,
embora a educação seja sempre feita em inglês nesta região do continente. Em
numerosos países africanos, entre os quais o Mali, as mulheres em específico
foram penalizadas: as moças, com frequência, têm que deixar a escola mais cedo de
que os rapazes, ou seja, no fim da quarta série, às vezes mais cedo ainda, a
fim de assumir as tarefas tradicionais da agricultura, ir buscar água na fonte,
cozinhar e outras tarefas domésticas.
Um aspecto do
mundo tecnológico de hoje é que a ciência e a pretensa “verdade científica” são
utilizadas para impor muitas escolhas inaceitáveis como o açambarcamento de
terras e as sementes OGM aos agricultores familiares analfabetos. Esta história
relata como um grupo de mulheres agricultoras do Mali se empoderou, tornando-se
capaz de falar com os cientistas, com as ONGs de desenvolvimento e com os
políticos. Elas puderam afirmar assim seus pontos de vista em todas as
discussões. Esta história mostra como o desenvolvimento da língua local
contribui para resgatar um “elo ausente” que possibilita que os saberes
tradicionais sejam mais valorizados e reconhecidos pelos cientistas.
Assétou Samaké
fundou em 2009 o Instituto Africano da Alimentação e do Desenvolvimento
Sustentável (IAD) que emprega cinco pessoas. Duas são especialistas do ensino
das ciências, especializadas no desenvolvimento de programas de estudo em bambara,
uma é especialista em educação ambiental e atividade de lazer para crianças,
outra é botânica, com uma especialização em genética das plantas, bem como um
técnico em rizicultura. O Instituto desenvolveu um certo número de parcerias
estratégicas, inclusive com a associação N’Ko para a defesa das línguas locais
e a promoção da cultura, a Associação das Organizações Profissionais Camponesas
(AOPP), a coalizão para a proteção do patrimônio genético africano, e a
Universidade de Bamako, no intuito de desenvolver as línguas nacionais como
ferramenta e como apoio para a aprendizagem. Este trabalho, por sua vez,
contribui para fortalecer a compreensão e o intercâmbio dos conhecimentos entre
as diferentes pessoas trabalhando em um campo dado como a agricultura. O
objetivo global é de desenvolver uma comunicação científica nas línguas
locais.
O
elo ausente
O IAD desenvolveu
uma pedagogia ativa universitária nas comunidades rurais camponesas. As duas
comunidades, universitárias e camponesas, se encontram em torno a um tema de
aprendizagem comum com o objetivo de compartilhar os saberes, bem como para
encontrar soluções partilhadas. Este procedimento comum permitiu descobrir a
grande distância que existe entre os universitários malianos que falam ao mesmo
tempo o francês e o bambara e as comunidades rurais que só falam bambara. Mesmo
se duas comunidades possuem saberes muito operacionais, não tinha sido possível
federá-las, nem criar uma sinergia.
A
principal dificuldade era a fragilidade do vocabulário científico.
A experiência de
pedagogia ativa dos universitários nas comunidades rurais os levou a elaborar
termos científicos para facilitar os intercâmbios entre as comunidades. Eles
começaram com os vegetais, pois o centro de interesse é a agricultura; as comunidades
camponesas possuem muitos saberes neste campo agrícola. Geralmente, as mulheres
sabem muita coisa, pois são elas que transmitem os conhecimentos às novas
gerações.
O IAD continua
trabalhando nas aldeias. O objetivo final é elaborar um léxico em bambara sobre
os objetos biológicos, pois isto é indispensável para que os camponeses possam
compreender e ter acesso aos conhecimentos em curso sobre as ciências da vida,
em especial as ciências e ofícios das sementes por causa do desenvolvimento
fulgurante da biotecnologia na agricultura.
Trabalhando em
estreita colaboração com as agricultoras no campo (no sentido próprio e
figurado), Assétou e sua equipe ajudaram a construir um novo vocabulário
científico completo em bambara. Elas criaram expressões correspondendo à língua
utilizada pelos científicos, e progressivamente, enriqueceram a língua com
expressões que não são “importadas”, como acontece geralmente, mas antes
criaram novas expressões em uma língua que é, em grande parte, construída sobre
imagens e gestos que já existem (o bambara é uma língua muito figurativa; é
portanto um processo complexo).
Alimata Traoré, agricultora da região de Sikasso no Mali toma a palavra
durante o encontro via satélite entre o DFID e os membros do Parlamento
britânico, Acra, janeiro de 2012, foto de Michel Pimbert.
Em poucos anos os
efeitos foram realmente notáveis. Combinado com o apoio dado pelas parcerias,
as mulheres passaram a se organizar em suas próprias estruturas de cooperação.
Elas construíram uma rede eficaz e uma corrente que lhes permitem produzir, armazenar
e comercializar seus produtos de maneira a garantir um valor agregado e
melhores preços. Elas podem conversar com cientistas, e de forma coerente, justificar
suas práticas de pecuária e cultivo tradicionais, mais eficazes que as sementes
híbridas ou OGM, insumos químicos bem como podem solicitar o apoio que elas
precisam de verdade.
Tive o privilégio
de participar de uma equipe de intérpretes que trabalhou em um Diálogo Político
de Alto Nível entre estas mulheres e membros da AGRA (o lobby revolução verde
na África), bem como com os membros da Câmara do Parlamento e da cooperação
descentralizada do Reino-Unido. A reunião era organizada pelo Instituto internacional
para a política do meio ambiente e o desenvolvimento (IIED) em Acra no Gana, em
janeiro passado. Estas mulheres, a despeito de serem na sua maioria
analfabetas, eram entre as mais eloquentes e poderosas que encontrei desde
vários anos. Sua força e sua coragem são notáveis.
Acima de tudo, a
força do apoio dado por Assétou Samaké e sua equipe poderia servir como modelo
para outros países e outras línguas. Infelizmente, numerosas línguas
indígenas/locais já foram perdidas, principalmente na América, onde o conceito
indígena do “viver juntos” – as relações entre os membros da comunidade
indígena e a natureza – é um modelo único e importante. Várias línguas
desaparecem a cada ano. Expressar-se em sua própria língua é um direito
fundamental, mas infelizmente não é verdadeiramente universal. É igualmente um
dos princípios chave de Babels, a rede mundial de intérpretes voluntários, uma
emanação do Fórum Social Mundial, a fim de permitir a cada um de se expressar
na língua que ele escolheu. Mas para estar apto a fazê-lo, o elo ausente no que
diz respeito ao desenvolvimento sustentável é, de fato, o tipo de trabalho
realizado pelo AID: a saber, “inventar” as condições apropriadas equivalentes
para um intercâmbio completo e igual, a autonomização das comunidades, e pôr em
evidência os conhecimentos tradicionais que, de outra forma, poderiam
desaparecer.
A respeito do boletim
Este boletim é
publicado em francês, em inglês, em espanhol e em português. Ele é realizado de
forma totalmente voluntária desde o primeiro número publicado em 2003.
A equipe editorial
quer agradecer as pessoas voluntárias seguintes pelo seu engajamento na
tradução e na revisão:
Michel Colin (Brasil)
Paula Garuz Naval (Irlanda)
Évéline Poirier (Canadá)
Brunilda Rafael (França)
Além disto,
gostaríamos de agradecer o Policy Research Institute for the Civil Sector (PRICS) do Seikatsu Club no Japão pela
tradução para o japonês.
Os boletins estão
na internet em dois endereços.
http://developpementlocal.blogspot.com/
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